O presidente dos EUA, Donald Trump, prometeu para esta segunda-feira revelações “incríveis” e uma possível explicação para o aumento do número de casos de autismo no país.
“Penso que encontrámos uma resposta para o autismo“, anunciou no domingo o presidente norte-americano, durante as homenagens ao ativista conservador recentemente assassinado, Charlie Kirk.
Diversos órgãos de comunicação social anteciparam que Trump irá ligar o consumo de Tylenol, ou paracetamol, e uma deficiência vitamínica, do folato ou vitamina B9, ao desenvolvimento de autismo em fetos.
Em 2022, uma em cada 31 crianças norte-americanas foi diagnosticada com alguma forma de autismo, um aumento face a 2020, que indicava uma em cada 36.
Incidência bem diferente da dos países europeus, onde o autismo é diagnosticado entre uma em cada 100 crianças, na Islândia e uma em cada 57, no Reino Unido.
Mas, desde que, em 2013, a definição de autismo foi alargada nos EUA, o diagnóstico pode refletir uma abordagem mais inclusiva em vez de uma taxa fundamentalmente mais elevada da doença.
O anúncio de Trump sobre o Tylenol poderá ser catastrófico em todo o mundo para as empresas que produzem medicamentos à base de paracetamol. As grávidas poderão também correr riscos acrescidos se não o tomarem em caso de dor ou febre, alertam os especialistas.
Quanto ao paracetamol a conclusão tem sido desmentida.
“Não há provas claras que comprovem uma relação direta entre o uso prudente de paracetamol durante a gravidez e os problemas de desenvolvimento fetal“, garantiu Christopher Zahn, chefe de prática clínica do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, em comunicado.
O Tylenol é nome dado nos Estados Unidos ao princípio ativo acetaminophen, ou paracetamol, um químico amplamente usado para diminuir e controlar a dor, incluindo durante a gravidez.
É considerado seguro e é o medicamento mais usado pelas mulheres norte-americanas para controlar dores e febre, também durante a gravidez.
Industria garante segurança
Se a Administração Trump desaconselhar o consumo do Tylenol nas primeiras semanas de gravidez, como antecipou o Washington Post esta segunda-feira, o impacto poderá ser devastador para os fabricantes de medicamentos à base de paracetamol, mesmo que a ligação científica com o autismo seja, no máximo, ténue.
A Kenvue, fabricante do Tylenol, garante que foram feitos todos os estudos nas últimas “décadas” e que o medicamente é seguro.
“O paracetamol é a opção mais segura de analgésico para as grávidas, conforme necessário, durante toda a gestação“, afirmou a empresa em comunicado no domingo.
“Sem ele, as mulheres enfrentam escolhas perigosas: sofrer de condições como a febre, que são potencialmente prejudiciais para a mãe e para o bebé, ou recorrer a alternativas mais arriscadas“, referiu ainda a Kenvue.
A seis de setembro, as ações da Kenvue caíram 14 por cento, depois de um relatório ter indicado que o secretário da Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy, se preparava para ligar o medicamento à possibilidade de causar autismo quando tomado durante a gravidez.
A firma é há anos alvo de queixas judiciais acusando o Tylenol de causar autismo em fetos durante a gravidez. Um juiz federal anulou em agosto passado todas as queixas, referindo a falta de provas científicas sobre a ligação. Os queixosos prometeram recorrer.
A Administração Trump pode estar a basear as suas recomendações em alguns estudos que mostraram uma ligação entre as mulheres grávidas que tomam Tylenol e o autismo.
Estas descobertas foram contudo inconsistentes e não provaram que o medicamento cause autismo, referem os especialistas.
Sem causa-efeito comprovada
Em agosto passado, a revista BMC Environmenthal Health publicou uma meta-análise a 46 estudos sobre o uso de paracetamol durante a gravidez e perturbações no neuro-desenvolvimento em crianças.
Seis desses estudos focaram precisamente o paracetamol e o autismo.
No geral, a análise concluiu pela existência de “fortes evidências de uma associação” entre ambos, mas os autores alertaram que o artigo apenas pode indicar “associações“, não que a toma de paracetamol cause autismo.
“Recomendamos o uso criterioso de paracetamol — menor dose eficaz, menor duração — sob orientação médica, adaptado às avaliações individuais de risco-benefício, em vez de uma limitação ampla“, escreveram os investigadores.
De acordo com Christopher Zahn, “as perturbações do neurodesenvolvimento, em particular, são multifatoriais e muito difíceis de associar a uma causa única”.
“As doentes grávidas não devem deixar-se intimidar, e optar pelos muitos benefícios do paracetamol, que é seguro e uma das poucas opções disponíveis para o alívio da dor nas grávidas“, sublinhou o chefe de prática clínica do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas.
Peter Hotez, pediatra que codirige o Centro de Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas e pai de uma filha com autismo, disse que as provas publicadas sobre a ligação entre o paracetamol e o autismo “não são muito convincentes“.
“Podemos explicar quase tudo [da perturbação do espectro do autismo] através dos genes do autismo. No entanto, certas exposições ambientais também desempenham um papel no início da gravidez, uma vez que interagem com os genes do autismo“, escreveu numa publicação nas redes sociais no domingo citada pela CNN.
Os especialistas alertam ainda para os riscos de febre e de dores durante a gravidez, que incluem aborto, defeitos congénitos e hipertensão arterial, de acordo com a Sociedade de Medicina Materno-Fetal.
A deficiência em folato
A mesma conclusão é referida para a deficiência de folato, ou Vitamina B9, importante para o desenvolvimento adequado do cérebro e da coluna vertebral do bebé, noticiou o Wall Street Journal no início deste mês.
A B9 é vital para a produção de DNA, glóbulos vermelhos e brancos, e para o desenvolvimento saudável do sistema nervoso e células em geral.
A Administração deverá também nomear a toma de ácido fólico, a versão industrial de folato, também conhecida como leucovorina, como forma de diminuir os sintomas do autismo. O ácido fólico já é recomendado para evitar casos de espinha bífida, por exemplo.
Peter Hotez referiu à CNN que a leucovorina poderá evitar alguns tipos de autismo mas não todos num espetro de mais de 100 genes envolvidos. “Seria como dizer que há apenas uma causa de cancro e que agora há uma cura“, explicou.
A Administração Trump, em especial o secretário de Estado para a Saúde, Robert F.Kennedy, prometeu para setembro uma resposta ao aumento de casos de autismo.
Kennedy tem ligado o fenómeno às vacinas.
Em abril deste ano, o governo norte-americano anunciou financiamentos federais da ordem dos 50 milhões de dólares para a investigação do autismo.
Dentro de dias deverão ser anunciados os 25 beneficiados, entre milhares de candidaturas aos fundos.
Graça Andrade Ramos, RTP com agências